quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Viver é incômodo



Vida é incômodo. Viver é revolver-se no incômodo a encontrar o conforto e a comodidade. No desequilíbrio da vida, urge fazer as pazes com o universo para que nos sintamos em casa.

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terça-feira, 19 de novembro de 2013

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 10

PAREDINHA PAREDÃO

– Pai, conta uma história.
– De quê?
– De paredinha paredão.
– E o que é isso?
– Aquela parede que eu subo, quando vou lá pra vovó.
– E essa agora!!! Vamos tentar. Era uma vez uma menina...
– Era eu?
– Era. Ela se chamava Júlia. Todo dia ela subia naquela calçada alta que parecia um paredão. Mas quando ela estava lá ensina ela se assustava e começava a dizer: “tô com medo, tô com medo, tô com medo”.
– É porque é muito alto, pai.
– Mas mesmo tendo medo ela pedia todo dia pra subir de novo. Só que um dia ela subiu e começou um vento forte a sopra: FUUHUUU! FUUHUUU! FUHUUU! E o que foi que aconteceu?
– Ela saiu voando.
– Exatamente. Ela voou, e voou, e voou. Feliz da vida ela gritava: “estou voaaandoooo!” Mas aí ela percebeu que sabia como descer e começou a ficar com medo de novo. “Quero descer, alguém me ajude!” E quem é que ia ajuda-la?
– Você, pai!
– E eu entro na história.
– É. Você não é meu pai. Você tem que me salvar.
– Tudo bem. Aí eu corri pra ajudar. E comecei a pular, pular, e pular. Até que eu consegui pegar na mão dela. E puxei pra baixo.
– E aí ela voltou pro chão.
– Foi. E depois disso?
– Depois ela queria voar todo dia pai!
– E eu tinha sempre que salvar?
– É porque ela é criança. Um dia ela vai aprender a descer sozinha.

Edilberto C. e Júlia Santiago.

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 9

QUASE UMA FÁBULA

– Pai, a tartaruga é um pato?
– Você acha que é?
– Não!
– Então por que pergunta?
– Porque a tartaruga nada no mar.
– E o pato nada no lago.
– Mas a tartaruga pode querer nadar no lago.
– Sim, mas nem por isso é um pato.
– Mas eu acho que ela queria.
– Ela quem?
– A tartaruga, pai! Ela queria ser um pato. Por quê?
– E eu é que sei? Nem sei do que você está falando,filha!
– Você viu no desenho. Ela olhando pro pato. Conta pra mim.
– Lá vem você com essas histórias... deixa ver se eu sei: era uma vez uma tartaruga...
– Não é assim, pai!
– E como é?
– Era uma vez a tartaruga...
– Pronto! Você falou a mesma coisa!
– Mas você não fez a voz grossa. 
– Posso continuar?
– Pode.
– Era uma vez uma tartaruga que todos os dias via o pato nadando no lago e morria de inveja.
– Inveja é feio.
– Mas é uma inveja branca. Sua mãe diz que inveja branca não faz mal.
– Então tá! Conta.
– Morria de inveja porque achava o jeito do pato nadar muito bonito. Ele ficava de cabeça pra cima, o peito pra frente e parecia que flutuava na água.
– E como a tartaruga nada?
– Ela mergulha no fundo e joga as pernas pra frente e pra trás.
– É feio?
– Eu não acho, mas a tartaruga achava. E aí ela olhava, olhava, olhava, e ficava pensando “ah, como seria bonito se eu fosse um pato”. Todo dia era isso.
– Mas um dia ela fez um pedido, não foi?
– Um pedido a quem?
– Um pedido ao espelho mágico pai. Ele fala.
– E pediu o quê?
– Pediu pra virar um pato. E virou.
– Virou, mas não saiu do jeito que ele pediu. A cabeça dele virou pato, com bico e tudo. De dentro do casco saíram duas asas de pato. Mas continuou com aquela armadura, feito uma casca por cima das costas.
– Assim ela não vai conseguir nadar, vai?
– Acho que ficou um pouco difícil. Porque ela nem era pato nem tartaruga. De cada um ficou faltando um pedaço. O pior é que os outros bichos acharam aquilo muito engraçado e começaram a chamá-la de pataruga.
– Pataruga? Ela gostou?
– Acho que não. Mas teve que se acostumar, porque ela fez o pedido e o espelho foi embora.
– Quando ficar de noite, eu vou acender uma lanterna e procurar o espelho pra ela.
– Tá certo! Se você achar me avisa que eu chamo a tartaruga.
– Aviso. Mas conta o resto.
– Só posso contar agora quando você encontrar o espelho. E ela não é mais tartaruga, é pataruga.
– Tá certo, pai.

Edilberto C. e Júlia Santiago.

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 8

NÃO É O LOBISOMEM

– Pai, você nem terminou de contar a história do homem lobo!
– Eu não lembro nem de ter começado essa história, filha.
– Mas você tava contando. Termina.
– É a história do lobisomem?
– Não, é do homem lobo.
– Tá bom! Deixa ver se eu lembro. Era uma vez um homem que não era nem homem, nem lobo.
– Ele era pai. Era homem loooobo.
– Ceeertooo! Só que ele não era feliz. Porque tinha só as orelhas e a cauda de lobo. O resto era tudo de homem. Cabeça, braços, pernas, tudo. Só que ele morria de vergonha.
– Vergonha por quê?
– Porque a orelha era grande e peluda. E tinha um rabo enorme e peludo. Pra esconder, ele usava sempre um chapéu na cabeça e uma calça bem apertada.
– Igual a você, não é?
– Só o chapéu, porque eu não uso calça apertada.
– Claro né, pai, você não tem rabo de lobo.
– Pois é. Mas esse homem tinha. Mas o pior era que nas noites de lua cheia ele ficava doidinho, não aguentava e subia até um monte pra fazer aquilo que todo lobo gosta de fazer. Você sabe o que é?
– Morder?
– Só às vezes. Mas ele ficava era uivando pra lua.
– Uivar? Como é? É assim: Huhuuuuuuuu!???
– Isso mesmo. Por isso, quando passava a lua cheia, ele ficava com mais vergonha ainda. Aí um dia ele foi procurar um duende pra ver se podia ajuda-lo. Você sabe o que é um duende?
– Sei. É um anão mágico.
– Justamente. Ele pediu ao duende pra fazer uma poção mágica pra ele deixar de ser lobo e ser só homem.
– O que é uma poção?
– É Tipo uma sopa. Aí o duende fez, mas disse pra ele que faltava um ingrediente. Sabe qual era?
– Sei sim. Uma pedra de velcro mágica.
– Uma pedra de velcro? Como é isso? Isso existe?
– Existe sim. Ela é redonda assim ó! De velcro.
– Tudo bem, mas onde ele ia achar isso?
– Na rua, pai! Ele vai andando assim, olhando e acha no chão.
– Como foi fácil! Aí ele levou pro duende, e ele fez a poção. O homem tomou e...
– Virou um lobo de vez.
– E foi?
– Foi. E saiu correndo, correndo, foi embora pra mata.
– Finalmente você conseguiu meter um lobo de volta em nossas histórias, não foi?
– Foi.


Edilberto C. e Júlia Santiago.

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 7

SAPO COMILÃO

– Vamos brincar de contar história, filha. Eu já estou cansado de dançar.
– Vamos, então. Conta a da árvore.
– De novo?
– É. 
– Vou contar, mas de outra árvore, certo?
– Tá bom, então conta logo.
– Era uma vez uma árvore no meio do bosque...
– E a menina?
– Qual?
– A que vinha andando?
– Nessa história eram três. As três meninas vinham andando e chegaram ao pé da árvore. 
– Elas iam fazer um piquenique?
– Era. Aí sentaram, botaram uma toalha, e a cesta com comida.
– E a árvore?
– Ela ficou ali só olhando. Mas no tronco dela tinha um buraco e de dentro as meninas começaram a ouvir um barulho esquisito. Mais ou menos assim: “BHURRRRBUL”.
– Era o lobo?
– Acho que não. O lobo estava de férias e foi fazer uma viagem.
– Pra onde ele foi?
– Não sei. Mas me deixa continuar... “BHURRRRBUL.” “BHURRRRBUL.”
– As meninas ficaram com medo?
– Foi. Aí elas correram pra casa.
– Mas, no outro dia, elas voltaram.
– Voltaram e ouviram de novo: “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”. Elas ficaram tremendo de medo, mas dessa vez a mais corajosa disse: “Vem de dentro da árvore. E se a gente olhasse?”. Uma respondeu: “Eu não olho, olha você”. A outra: “Eu não, vai você!”
– E o que tinha lá dentro?
– Deixa a menina criar coragem de olhar.
– Manda ela olhar, pai.
– Tá certo. Aí a mais corajosa botou a cabeça, bem deee-vaaa-gaaar-ziii-nho e..
– Viu o lobo?
– Não um sapo, enorme, entalado lá dentro de tanto comer mosquito, fazendo: “BHURRRRBUL”.
– Mas o sapo só faz “uéber”, “uéber”, “uéber”.
– É, mas esse tinha comido mosquito demais e estava entalado dentro da árvore sem poder sair. Ele só conseguia fazer: “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”, “BHURRRRBUL”.
– A menina tirou ele...
– Tirou e ele foi embora pulando.
– Não disse nem obrigado?
– Ele não conseguia nem falar de tão cheio que estava.


Edilberto C. e Júlia Santiago.

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 6

OLHO AZUL OLHO AMARELO

– Pai, que livro é esse?
– É um livro de estudo do papai.
– Conta ele pra mim.
– Mas não é uma história, filha. É um livro de estudo.
– É uma história, pai. Vê o desenho? Tem um olho azul e outro amarelo. É um menino.
– Se você quiser, a gente pode inventar.
– Então inventa!
– Está bem. Era uma vez um menino que tinha um olho de cada cor. O direito era azul e o esquerdo era amarelo. Tinha gente que gostava de olhar para o azul porque pensava que estava no céu.
– Mas o olho amarelo parece um gato.
– É. Por isso tinha gente que também gostava de olhar pra ele. E pensavam que estava no sol.
– Só que a amiguinha dele gostava dos dois olhos.
– E quem era essa amiguinha?
– Era Júlia.
– Era você?
– Não pai, era outra Júlia. Olha pra ela, o olho dela não tem cor, e o meu é preto.
– A tá. Por isso que ela gosta de olhar o olho do menino, não é?
– É. Todo dia ela olha pro olho do menino. Olha no azul, olha no amarelo.
– E o que ela vê?
– O céu e o sol. Aí ela voa bem muito dentro do olho dele.
– Como pode isso, filha? Voar dentro do olho!
– É, mas é de brincadeirinha. Ela voa lá dentro e ele gosta muito porque ele vê ela voando, voando, feito um passarinho.
– Essa história está ficando um pouco maluca. E ele não voa?
– Voa sim, ele é um anjo.
– Mas um anjo serve pra ajudar. Ele ajuda a quem?
– Ajuda a menina a voar, porque ela não tem olho.
– Nossa, que lindo, filha! E como acaba essa história?
– Acaba quando ela chegar bem longe. Ela vai encontrar um olho pra ela. Aí ela pode ver tudo.


Edilberto C. e Júlia Santiago

DESFABULÁRIO DA INFÂNCIA 5

A MENINA QUE VIROU ESTRELA

– Pai, conta uma história.
– Qual?
– A da árvore.
– Essa eu já contei demais.
– Conta outra então.
– Eu gosto de contar quando você me ajuda. Você começa e eu continuo.
– Então, tá. Era uma vez uma menina...
– ...que vivia muito sozinha.
– Onde estava a mãe dela?
– Tinha ido embora pra muito longe.
– Mas ela não ia voltar mais não?
– Acho que não. Ela estava num lugar muito, muito longe.
– E o pai dela?
– Ele vivia com ela, mas trabalhava demais. Saía de casa muito cedo e chegava muito tarde. Quando ele saía, ela ainda estava dormindo. E quando ele chegava ela tinha ido dormir.
– Mas ele não brincava com ela?
– Brincava pouco. Nos sábados, quando ele tinha folga do trabalho.
– Ela chorava?
– Só às vezes. Mas ficava em casa muito triste. Aí um dia o pai dela disse pra ela ir pra uma festa. Pra se divertir um pouco, e ela foi.
– Ela dançou?
– Dançou muito, muito, muito. E ficou bem contente. Mas quando ela voltava pra casa, ela se perdeu e entrou pela floresta.
– Ela vai ver o lobo?
– Não. Dessa vez o lobo tinha ido pra casa da tia dele. Mas ela continuou andando e não sabia o caminho de volta. Andou tanto que ficou cansada. Sentou debaixo de uma árvore e acabou dormindo.
– Aí o lobo chegou?
– Você só pensa no lobo! Não. Ele foi pra casa da tia dele e acabou dormindo porque estava muito tarde. Mas a menina ficou lá dormindo. De repente ficou muito escuro e apareceu a lua e as estrelas.
– A lua é uma estrela?
– Não. A lua é um satélite. 
– Ela parece a minha unha.
– É só na lua minguante.
– Mas conta a história, pai.
– Tá certo. É você quem fica mudando o assunto. A menina dormiu e começou a acontecer uma coisa muito estranha. Começou a juntar vaga-lume em cima dela. Você sabe o que é um vaga-lume?
– É um mosquito.
– É. Só que é um mosquito que acende uma luzinha. E eles começaram a pousar em cima da menina, um dois, três, dez, mil. Até que ela ficou toda coberta de vaga-lume e toda acesa, brilhando, brilhando. Aí os vaga-lumes começaram a voar e foram levantando ela, que voou junto toda acesa. Eles subiram até o céu e lá ela virou uma estrela. Junto com a sua mãe.
– A mãe estava no céu?
– Era. Mas elas se juntaram lá.
– Essa história é muito triste.
– Você não gostou?

– Gostei. Eu não gostava de história triste quando era bebê, mas eu já cresci. Olha... eu não estou nem chorando.

Edilberto C. e Júlia Santiago.

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